domingo, 28 de novembro de 2010

Litania da velha e decadentismo: abrindo as portas do tempo











O decadentismo, como já vimos, não é uma estética decadente, mas como bem disse Latuf (LATUF, 1994, p.16) sobre o seu significado: “coloca-se como espelho (espelho às avessas) de uma sociedade decadente”.

Ao comentar criticamente o poema de Arlete Nogueira da Cruz, vamos partir de algumas indagações: é possível revisitar o triângulo do dispêndio e suas conexões em Litania da Velha? Flâneur, dândi, lésbica ou prostituta: que relações encontramos entre esse triângulo e Litania da Velha? Como pensar a cidade, a correlação da sua transformação no decadentismo, como vimos no capítulo inicial, com a alegoria da decadência da cidade entrevista no poema de Arlete Nogueira da Cruz?

O decadentismo é marcado pela transgressão da economia verbal. Poderíamos dizer que há transgressão da economia em Litania da Velha? Quê, de decadentismo, salta do poema? Há como confrontá-los? Há traços comuns nos finais dos séculos XIX e XX: crítica à cultura, niilismo, ausência de sentido para a vida, exacerbação narcisista? Há como dizer que esses traços se repetem? De que maneira, em que contexto?

Sem pretender responder a todas as indagações, na medida em que a última palavra – lugar das respostas absolutas – é o lugar da falência, pretendemos comentar Litania da Velha considerando a visita decadentista ao poema contemporâneo, a fim de estabelecer um possível diálogo entre uma estética do final do século XIX e um produto artístico do final do século XX.

O imbricamento do moderno e do pós-moderno na literatura é o que permite pensar na visita decadentista ao texto contemporâneo ou verificar o que de contemporâneo já está contido no decadentismo.

Partindo dessa possibilidade, abriremos as portas do tempo, atenuando suas fronteiras, porém marcando as diferenças, passando primeiramente por um comentário crítico de Litania da Velha.

A revelação poética

O eu é um outro.

(Rimbaud)

Litania da Velha traz a imagem de uma velha mendiga e de uma bela cidade desolada, em ruínas, ambas revelando abandono e descaso. A beleza da cidade perfaz-se numa via antitética que emana do horrendo e da força das palavras que a constituem.

Paralelamente à tessitura poética da cidade, ou porque não dizer, num processo topológico – para recorrer às figuras matemáticas que criam superfícies em que o dentro e o fora se confundem – a velha, ou seja, o ser (e quando disser ser, entenda-se principalmente o humano) também é concebido em sua decrepitude.

Uma relação orgânica entre ser e cidade exibe restos e ruínas. O interessante é que, em determinados momentos do poema, não sabemos de que/quem se trata: se do ser ou da cidade, tamanha a especularidade que há entre/na constituição de ambos. Velha e cidade tematizam vida e morte, o corpus e a sua falência.
[...]

Litania da Velha inicia-se com uma introdução marcada pelos dois primeiros dísticos, que se destacam dos demais versos do poema, na medida em que apontam para o lugar de onde fala a voz narradora que identificaremos com a revelação poética. Embora o tema central do poema seja a cidade, os quatro primeiros versos encontram-se apartados dos demais em sua essência. O primeiro dístico traz uma referência temporal, sendo o tempo o termo que rege a ação. O poema nos é oferecido como a ruptura de um silêncio que se perfaz em poesia.

O tempo consome o silêncio e mastiga vagaroso a feroz injustiça. 

O campo se perde embebido em jenipapos para a manhã sufocada.

Os bois da infância ruminam sua paciência e espreitam essa audácia. 

– O tempo dói na ferida aberta da recordação.

O primeiro e o segundo dísticos estão imbricados. As personificações do tempo e dos bois da infância fazem um contraponto, sendo que o primeiro dístico é representado pela ação de um Outro que fala e o segundo pelo eu que se apassiva diante das palavras, que insistem em dizer através da voz narradora... Essa representação é correlativa ao aforismo de Rimbaud: “O eu é um outro”.

Consideramos que a criação poética é o que habita o poeta. O poeta é habitado pela linguagem e dela se serve, para servir-se. O poeta nasce e (re)nasce a cada momento da criação, na medida em que ele só existe na criação. O poeta nunca é, está sempre a se fazer, o vir-a-ser é a matéria prima da criação literária.

Nos dois primeiros versos de Litania da Velha, o tempo, ou melhor, um certo tempo foi necessário para romper esse silêncio, tornando-se parte constituinte das palavras a partir de uma anterioridade lógica. O silêncio, entendido aqui como um tempo necessário de maturação; o tempo, como a consumir uma existência que um dia revelar-se-á em palavras.

Se, por um lado, o silêncio é o humus de onde as palavras brotam, um certo tempo de solitude do autor é necessário para tornar-se o revelador desse brotar. O despertar poético, um tempo de revelação, traz também uma mudança de lugar ou um lugar de mudança, interstício poético, possível de “tornar visível, o visível”, para citar a epígrafe de Paul Klee, que abre o poema.

Os versos iniciais fazem uma dupla marcação: anunciam, simultaneamente, que vêm revelar algo da ordem de uma denúncia e que vêm mostrar essa alienação e separação necessárias entre o eu/Outro na criação poética.

A introdução traz dois níveis de leitura: explicitamente, o mote do poema; e, implicitamente, o lugar de onde fala a poeta ou voz narradora.

A primeira revelação diz respeito ao corpo do poema, uma denúncia em torno da cidade e da injustiça social; a segunda revelação, a revelação poética, fala do momento constitutivo da poeta no ato da criação, e, no dizer de Octavio Paz:

“O precipitar-se no Outro apresenta-se como um regresso a algo de que fomos arrancados. Cessa a dualidade, estamos na outra margem. Demos o salto mortal. Reconciliamo-nos.” (PAZ, 1982, p.162)

Os dois primeiros dísticos estão marcados por indicativos temporais representados pelas palavras manhã, infância e recordação, que se ligam, respectivamente, a: sufocada, ruminam e dor. As palavras vêm, da ordem de um tempo anterior, recobrir uma dor.

Porque há dor, pode-se escrever. É porque “– O tempo dói na ferida aberta da recordação” (único verso precedido de um travessão) que se diz. Esse verso é catalisador da introdução. Sob a égide do tempo, a poeta abre a boca e entoa o seu canto; a partir de uma dor, a poeta diz e, simultaneamente, se diz.

A dor tem um lugar marcado na tessitura do poema. A dor, em Litania da Velha, é correlativa à melancolia de Cínzia – protagonista do romance A Parede, de Arlete Nogueira da Cruz. Nauro Machado, na orelha da sua segunda edição (1993), comentando-o, identifica o estado melancólico de Cínzia como “estado positivo que dificulta na personagem o esquecimento e lhe estimula a revolta”.

Referindo-se ao ato de criação poética e não propriamente ao universo ficcional, podemos dizer que a dor, revelada pela poeta, compara-se à melancolia da citada personagem, a partir da positividade da afirmação que aflui da dor na criação poética, assim como, para a personagem de A Parede, a melancolia a impulsionava a agir.

Ainda, para observar o lugar da dor e da melancolia na escritura da autora, observamos que Freud, em seu ensaio Luto e Melancolia (FREUD, 1989, v. XVI, p.286), ao referir-se ao estado melancólico, denomina-o “ferida aberta, atraindo a si as energias catexiais”. A “ferida aberta da recordação” do verso de Arlete nos traz a imagem de algo incicatrizável, a recordação recoberta pela dor.

[...]

Consideramos portanto a introdução, marcada pelos quatro primeiros versos, como uma ação poética específica que aponta para a demarcação de dois lugares: o lugar do vir-a-ser, que constitui a voz narradora, e o lugar da dor na criação poética. Podemos então afirmar que, considerada por nós, a introdução não traz a “diegese” poética, mas é indicativa do estado fomentador do poema, a saber, a dor.

[...]

Cidade e decadência

Como foi visto, a urdidura poética de Litania da Velha nos leva à trama da cidade, mais especificamente ao centro histórico de São Luís e seu entorno, ao seu traçado, a uma viagem no tempo que só pode ser pensada enquanto pudermos pensar também no ser.

Pensar a cidade é, simultaneamente, pensar o sujeito e o desejo que a habitam e, ao mesmo tempo, a constituem, na medida em que a cidade não se constitui sozinha, somente de sua arquitetura, mas daqueles que a habitam.

Os movimentos da velha, sua peregrinação, nos fazem indagar sobre os movimentos desejantes da cidade, nos fazem pensar nos rumos assumidos pela cidade, em seus destinos.

Litania da Velha interroga sobre a relação ser/cidade. A velha carrega sua dor presentificando uma ferida aberta – na cidade que segue alheia a sua gente, a seu patrimônio. Chamamos, a essa parte, de corpo do poema, diferenciando-o da introdução e do fechamento.

Chama a atenção que a velha, em seu caminhar, não fale. A única vez que tenta, murmura baixinho:

13 A velha sobe o degrau da quitanda murmurando baixinho.
14 O balcão é o encosto onde ela se ampara como faz todo dia.


A velha é um poço contido, seus desejos não são expressos. A fala, única via de expressão do desejo, está elidida do poema, perfaz-se em uma repetição automatizada. A velha, em seu caminhar mudo, não expressa desejo. Mesmo ao final do poema, no momento extremo de um desamparo mortal, as palavras que poderiam ser ditas não o são e até um grito de dor, última expressão possível e incontida, esse grito não sai:

100 A boca calada engole o grito de dor que ecoa no abismo.

As palavras não-ditas retomam contra o próprio sujeito; a dor que não pôde ser expressa ecoa no abismo, ou seja, se perde no âmago do próprio sujeito.

A velha nos é mostrada como uma figura que vive na ordem da necessidade, afastando-se da ordem do desejo. Correlativamente à figura da velha, a cidade nos é mostrada em seu abandono; vemos que seus escombros estampam a morte, como nos seguintes versos:

09 Os buracos se espalham no chão como lagos avulsos de águas toldadas.
34 Os manguesais não resistem à fúria das ambições traiçoeiras.
35 Os barcos das velas de cores não mais se acrescentam ao belo poente.
36 O aterro conjuga o bumbareggae e a fumaça dos vícios funestos.
46 Os sobradões sem telhados são armadilhas de sorrateiro interesse.
48 As antigas alcovas se abrem em cloacas na incontinência dos restos.
53 O sobrado desaba sob a complacência de quem lhe espreita essa queda.
60 A antiga cidade é uma ilha que se desfaz em salitre.


Essas imagens estampam a agonia mortal da cidade, imagens de decadência de uma cidade que se desmancha, se desfaz, se esfacela. Uma cidade histórica, um conjunto arquitetônico real que revela uma marca, significativa de um tempo, fica relegada ao acaso, à decadência.

As figuras que habitam a cidade – cachorro, criança, pescador, bêbado, mulher, camelô e passante apressado – revelam também o descaso e o abandono, estendem-se pela cidade e compartilham de sua decadência:

11 O cachorro, perdido, caminho o desvio de seu abandono.
12 A criança brinca no esgoto que escoa também o seu sonho pequeno.
15 O bêbado cochila sentado babando os espasmos da inconsciência
31 O pescador sobre as águas conduz a canoa sem âncora e leme.
32 Os peixes mais nobres não restam ao alcance da sua fome e anzol.
56 A mulher, no desespero da hora, cata ansiosa os seus rastros de amor.
65 O camelô oferece o produto supérfluo suplicando que o levem.
66 O passante apressado atropela o que passa passando com pressa.


Os habitantes que são mostrados no poema trazem a visão da decadência, relegados ao mesmo abandono da cidade. O cachorro está sem rumo, a criança está sem perspectiva, o bêbado está sem consciência, o pescador está sem âncora e sem leme, a mulher está sem amor, o camelô está sem fregueses, o passante está sem ver. Há uma aflição, um desconhecimento do outro e uma falta de perspectivas, mostrados por essas figuras.

Vemos que, tanto no aspecto físico da cidade como no de seus habitantes, comparecem figuras que acedem aos interesses dessa decadência, como no verso 46, em que se destaca sorrateiro interesse; no verso 53, que fala da complacência de quem lhe espreita essa queda; ou nos versos:

62 O jornal se corrompe na atroz estufa do lodo e do lucro.
70 As crianças, jacintos errantes, reclamam cuidados fraternos.
71 Os cuidados se esgotam no galopar de rubros sendeiros.
77 A arrogância dos homens espreita e apressa a gentil despedida.


Entendemos que o retrato da cidade, e de suas imagens em decadência, é o retrato de todos aqueles que habitam a cidade, na medida em que são os movimentos desejantes de cada sujeito que constituem os movimentos desejantes da cidade. Podemos nos perguntar a quantas anda o desejo daqueles que ocultam uma história da cidade e, ao mesmo tempo, relegam-na às ações do tempo. Nesse aspecto, podemos fazer um paralelo entre a cidade dos fins do século XIX e a cidade que nos é apresentada em Litania da Velha, nos fins do século XX.

Nos fins do século XIX, por exemplo, era o progresso que se impunha à Paris de Baudelaire. A configuração da cidade recriada por Haussmann impunha deferentes movimentos na relação dos habitantes com essa nova cidade. A construção do Moderno e suas conseqüências foram consonantes à estética decadentista.

O aspecto de decadência que se revelava na literatura dos fins do século XIX apresentava-se, basicamente, sob duas formas: por um lado, o apego a imagens decadentes ou transgressoras da economia que revelavam a precariedade do progresso e do sujeito falante; e, por outro lado, uma exacerbação da escrita, de adjetivos e de ornamentos que tinham a mesma função das imagens de decadência, a saber, conduzir o leitor ao labirinto, ao abismo, na ordem da transgressão da escrita. Para os decadentistas não havia mais crença, a literatura revelava sujeitos apartados de quaisquer expectativas.

Litania da Velha também nos traz seres sem expectativas.

[...]

*Maria Sílvia Antunes Furtado é Mestra em Teoria Literária, psicanalista e professora do Uniceuma.

(DA CRUZ, Arlete Nogueira da Cruz. Litania da Velha. São Luís: Lithograf, 2002, p.110-127)

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