domingo, 8 de janeiro de 2012

Futuro improvável



Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como a um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro mas uma força ainda não classificada que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei explicar que, sem alma, sem espírito, é um corpo morto - serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro, é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto.
LISPECTOR. Clarice, 1920 – 1977
A descoberta do Mundo: Futuro improvável

As pequenas memórias

 
 
 
 
Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e húmida vara ou os sonoros remos de antanho, impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu até às fronteiras do sonho um certo ser que flui e deixei encalhado algures no tempo.


SARAMAGO. José, 1922 - 2010
As pequenas memórias

A HORA DOS LOBOS



Pai de espectros, de sombras,
Por que há anoitecer
Depois de cada aurora?
Sou uma voz que pergunta

O que não tem resposta:
Por que ainda sobra
A luz em nossos olhos
Quando a escuridão volta?

Nauro Machado