Uma  vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O  espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações.  Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com  jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha  alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra  paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer  janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo,  esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como  única valise, segue-me como a um cão. E irei à frente, sozinha,  finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar  algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro mas uma  força ainda não classificada que nem por isso deixará de existir no  mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já  terá desaparecido. Não sei explicar que, sem alma, sem espírito, é um  corpo morto - serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são  quatro, é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue  aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos  seres que amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto.
 
LISPECTOR. Clarice, 1920 – 1977
A descoberta do Mundo: Futuro improvável
 

 
 
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